PARA UMA
IMAGEM DE CLEY
UM CONTO DE JÚLIO
CORTÁZAR (*)
Publicado
no jornal Movimento em 11-out-1976, última página.
O conselho editorial desse jornal era constituído por Alencar Furtado,
André Forster, Audálio Dantas, Chico Buarque de Holanda, Edgar da Mata Machado,
Fernando Henrique Cardoso, Hermilio Borba Filho e Orlando Villas-Boas.
—
Como vai, Cley ?
— Tudo bem.
Ao longo de anos,
de telefonemas e cartas, cada vez que lhe perguntei como estava ouvi a mesma resposta. Mas nem tudo ia bem,
muito ao contrário, no momento de falar se descobria que as coisas eram duras
para ele, que a vida tinha começado a encurralá-lo lentamente, tirando-o de sua
pátria brasileira para trazê-lo a uma Europa esquiva e difícil.
Falo de Cley Gama
de Carvalho, que se suicidou há poucos meses depois de regressar ao Brasil:
falo de um homem a quem conheci e vi muito pouco e que mesmo assim me traz a
estas páginas com em outras ocasiões me trouxe ao riso, à poesia do absurdo, à
confiança em uma amizade que não necessita da presença e da correspondência
para estar aí, para se fazer sentir nessas esquinas do tempo em que tudo é como
um milagre e uma reconciliação.
Sei que algum dia
os brasileiros descobrirão melhor Cley e que outros amigos escreverão
lembranças mais completas e ricas sobre alguém que passou por nossas vidas como
um bater de asas, como esses fragmentos de música ou de prosa que alcançamos em
pedaços enquanto fazemos correr o dial do rádio, algo sem antes nem depois, apenas
presente e já perdido. Digo somente o que conheci de Cley, uma de suas sombras de
frente e de perfil, imagem de três quartos ou em claro-escuro, e sei que não
devo escrever seriamente, porque Cley e eu vivemos uma amizade patafisica e a
bofetadas, e a única seriedade autêntica desta silhueta entre cortinas ou
desencontros tem que nascer de uma confusão total do tempo e do espaço, de uma
anarquia da escrita pela qual consigam se tecer pássaros e poesia e garrafas de
cachaça. As duas garrafas e o garrafão de cachaça.
De onde Cley tirou
a idéia de que eu poderia gostar de cachaça, já é tarde para se perguntar, mas
por alguma razão devia estar convencido de que eu não era capaz de sobreviver
em Paris ou em Buenos Aires sem essa pegaj/delic/perig/odor/osa aguardente que,
para dizer a verdade, é difícil de se conseguir fora de seu habitat natural.
Quando nos conhecemos na França (Cley me pediu uma entrevista para um jornal
paulista ou carioca, e me escreveu uma carta que era um grande argumento para
não dá-la, razão pela qual aceitei logo, coisa que ele encarou com absoluta
naturalidade porque, claro, tudo bem), penso que tomamos café, e uísque, e se a
cachaça entrou nos temas da conversa foi por pura casualidade. Passaram dois
anos, período cíclico da minha amizade com Cley, que voltava como um cometa
eriçado quando eu começava a me perguntar que diabos, etcetera, e uma manhã
chamam à minha porta da rue de l’Esperon e é um carteiro que me olha severamente
e me entrega uma coisa da qual prendem pedaços de jornais velhos e barbantes
verdes.
— O senhor compreenderá
que o correio não se responsabiliza pelo estado dessa encomenda — me disse com
a perfeita voz do artigo 34-bis. — É um milagre que tenha sido aceita no pais
de origem, e muito mais que tenha chegado até aqui, ça alors.
Eu, que estou
acostumado a frequentes catástrofes burocráticas, devido à minha própria índole
e à de minhas amizades e amores, tendo adivinhar por trás disso vem uma multa,
mas nada, apenas meu nome foi escrito com tinta azul sobre o papel exterior
totalmente destroçado, e realmente o correio merece minha gratidão por ter
compreendido que Julio Cortázar não é um embaixador esquimó mas somente alguém
que depois de sentir o peso do objeto, ouve um gluglu e vê um gargalo de
garrafa verde. Assim chegou à minha casa a primeira remessa de cachaça de Cley,
mas além disso a garrafa não era uma garrafa convencional pois representava um
palhaço, quer dizer, tinha todos os tipos de deformações e rabiscos e era uma
garrafa para ficar deitada e ser aberta pelo lado do gorro amarelo do palhaço,
momentos em que o perfume da cachaça saía como o gênio de Aladim e se insinuava
para sempre no meu apartamento de rue de l’Esperon.
Quando voltei a
ver Cley e descrevi para ele o que considerava um prodígio de sobrevivência
postal, notei que ficava muito tranquilo, porque segundo ele uma garrafa
envolta em dois jornais velhos não tinha como se extraviar entre São Paulo e
Paris. Não era tão mau: dois anos depois, as coisas mudaram em Buenos Aires, e
antes de mais nada é bom dizer que nunca consegui saber como Cley obteve meu endereço,
porque era um endereço bastante secreto por razões óbvias, e a única explicação
é que eu mesmo tive que dá-lo em resposta a algum de seus cartões postais
reexpedidos de Paris, cartões cheios de dançarinas baianas e papagaios delirantes,
além de mensagens quase sempre indecifráveis mas isso não importava porque seu
sentido era sempre o mesmo, sempre tudo bem, ainda que Cley estivesse passando
momentos duros em sua cidade ou em qualquer outra cidade onde sempre algo duro
esperava Cley.
Então ocorre que
batem à minha porta na rua Maipú e um carteiro me passa um envelope oficial e
me faz assinar um recibo de entrega. Dentro do envelope há um desses documentos
que só o gênio de uma repartição pública pode produzir, com abundantes “visto que...”
e “tendo em consideração que...”, do qual deduzo: a) que o correio central de
Buenos Aires recebeu uma encomenda procedente do Brasil e destinada à minha
pessoa; b) que a encomenda contém uma garrafa de licor não identificado
(veja-se c); c) que a embalagem imperfeita da acima mencionada encomenda
provocou a ruptura em numerosos pedaços da garrafa e a consequente perda de seu
conteúdo; d) que os restos da encomenda se encontram à minha disposição no
apartamento do informante; e) que se me interessa recuperá-los, deverei pagar a
soma de cinquenta e oito pesos, em moeda nacional.
Com alguma
ingratidão por tamanho zelo burocrático, respondi que não me parecia
apaixonante ir buscar um montão de vidros quebrados, e em vez disso mandei para
Cley a carta do correio para que se lamentasse comigo o destino da cachaça. Mas
ele não pensou da mesma forma, porque quando voltamos a nos ver na França, me assegurou
que a garrafa tinha sido muito bem embalada e que provavelmente o pessoal do
correio tinha bebido sob o pretexto de alguma festa nacional. De qualquer modo
sua confiança nos serviços postais parecia um tanto abalada, porque dois anos
depois optou por me entregar pessoalmente um garrafão repleto de cachaça e como
eu ficaria impressionado diante da quantidade e do tamanho, me assegurou que
não era mais do que uma parte da provisão que havida trazido para enfrentar o
inverno parisiense.
Naquela época, eu
tinha lido o texto de sua magnífica peça teatral “Cromossomas (Como Somos)”,
cuja representação no Brasil havia servido precisamente para facilitar a vida e
a tranquilidade de Cley. Alguém que tenha visto a peça poderá me explicar um
dia porque esse texto me reconduz com tão terrível violência a coisas como a
pintura de Francis Bacon; o destino contemporâneo do Brasil, interalia, está
ali como que lançado à cara do espectador, esculpido e vomitado com mais força
e mais eficácia que num panfleto ou num ensaio político.
Quando passei por
São Paulo em 1973 (antes da segunda garrafa de cachaça) tive a impressão de que
as coisas se tornavam cada vez mais criticas para ele, ainda que isso não o
tenha impedido de me convidar a subir no andar mais alto do edifício Itália. E
de nos mostrar, à minha mulher e a mim, o panorama da imensa, esmagadora
cidade. Falamos de nossos temas de sempre. Sem menção especial à política;
parecia interessar Cley muito mais pela música ou o teatro ou o mundo universal
dos cronocópios, mas eu já conhecia os seus vazios de silêncio, esta delicadeza
com a qual afastava as referências pessoais que considerava desnecessárias,
pura perda de tempo. Voltamos a nos encontrar em casa de Haroldo de Campos, e,
poucos meses depois, reapareceu em Paris; me bastou vê-lo para saber que as
minhas impressões paulistas se confirmavam. Nunca saberei exatamente o que se
passou. Cley me disse apenas que tinha emprestado seu apartamento a um amigo
que precisava se esconder por algum tempo, e que a policia tinha considerado
isto como causa suficiente para levá-lo preso e de passagem arrebentar todos os
seus dentes. O tratamento médico levaria muitos meses, mas o importante para
Cley era me pedir noticias de Yoyo, coisa que jamais tinha deixado de fazer em
suas cartas e cartões postais; assim levei-o à minha casa, bebemos e fumamos, e
Yoyo estava aqui como sempre e aqui continua enquanto escrevo, continua aqui
para me lembrar que Cley não voltará nunca mais a acariciar sua cabeça e
dizer-lhe alguma coisa tangencial que me está destinada e que ele prefere dizer
a Yoyo.
Porque Yoyo é uma
escultura de bronze, um boneco com ar truculento que vive sentado numa de
minhas poltronas e que o escultor Reinhoud me presenteou há anos. Todo mundo
ama ou detesta Yoyo (suponho que ele retribui em doses iguais, porque é
perverso e brincalhão como todas as criaturas de bronze ou de latão de
Reinhoud) mas Cley foi o único que desde o primeiro dia estabeleceu com ele uma
relação pessoal e direta, um código que eu decifrava logo em suas cartas, onde
as referências a Yoyo tinham sempre a ver com outras coisas, com outras
esperanças ou temores. Sentia-se que Yoyo havia aceito Cley de entrada, que
entre os dois existia a mesma desmedida física, sapatões e barba desgrenhada em
Cley, narigão e barriga redonda em Yoyo, compadres para sair de noite pelas
ruas de Gante ou de São Paulo, para misturar cerveja e cachaça com canções e
poemas.
Além disso era
preciso viver, Cley estava na França com sua mulher e um filho pequeno, por
algum tempo trabalhou numa revista em português destinada aos turistas
brasileiros na França, acho que fez algumas entrevistas, talvez tenha escrito
outra peça de teatro. Como sempre nos víamos pouco; para mim foram anos de viagens continuas e
só de vez em quando recebia uma mensagem de Cley, seu Tudo bem que me deixava
insatisfeito, me obrigava a pensar na canção de Caetano Veloso na qual tão
terrivelmente se diz:
Meu Amor
Tudo em volta está deserto
Tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco...
Nosso
último encontro veio como sempre de Cley, quis que eu conhecesse o pintor
Gruber, em cuja casa estava vivendo, e lá fomos os dois e passamos uma longa
noite com Gruber e sua mulher e a mulher de Cley, olhando pinturas, comendo
delicias brasileiras, escutando vozes de Maria Bethania, quiçá de Gal, em
seguida Chico Buarque e Caetano, a barra amiga e dispersa e querida como
sempre, nosso Brasil diferente, longínquo e futuro.
Não quero nenhuma
necrologia, depois disso não se sabe bem como e porque Cley viajou a um pais
nórdico, de lá me enviou uma carta pouco compreensível mas que trazia referências
pessoais novas, uma confiança bruscamente intima que me surpreendeu, e logo em
seguida lembranças para Yoyo. Sua volta a Paris coincidia com uma viagem minha
para não sei aonde; quando voltei, um amigo anônimo tinha deixado uma mensagem
e um número de telefone. Chamei, e ele me explicou que Cley tivera um colapso
total, que havia estado nas mãos dos psiquiatras, que os amigos decidiram
fazê-lo voltar para São Paulo, onde poderia ser melhor atendido. E de São
Paulo, recentemente, chegou o telegrama de Grauber dizendo-me que Cley não
aceitara o lento naufrágio de sua mente e acabava de se suicidar. Repito que
não quero necrologias, falo dele como se em qualquer desses anos (sempre cada
dois anos, e ainda não foram completados) tivesse que abrir minha porta e
encontrar o carteiro com uma garrafa de cachaça em forma de palhaço ou fragmentada
em pedaços. Simplesmente contei tudo a Yoyo, porque é justo que saiba; algum
dia os paulistas, todos os brasileiros, saberão melhor quem era Cley Gama de Carvalho,
como passou por seu tempo com uma dignidade de um grande urso livre, com um
sorriso calado de ironia sem maldade. Não sei quantos originais publicáveis terá deixado, e
nem se algum amigo com as qualidades de Yoyo cuidará em sua terra de fixar uma
imagem que para mim continua sendo uma grande sombra entre duas cortinas, um
Tudo Bem cheio de generosidade até mim, seu amigo bienal, seu cronópio de
Paris.
***
(*)
Autor de Rayuela,
Ultimo Round, Todos los fuegos el fuego, Lavuelta al dia em ochenta mundos, Historia
de Cronopios e de Famas, o nome e a obra de Julio Cortazar dispensam maiores
apresentações. Embora tenha
fixado residência há muitos anos em Paris, seus textos têm raízes na melhor
tradição do conto argentino, fazendo este avançar até mares não navegados, e as
preocupações políticas e culturais de sua obra, como um todo, permanecem no
coração do continente. Deste continente que, hoje, vivem em tantos fragmentos
de consciência dispersos pelo mundo todo, Europas a fora. O texto que segue,
crônica pessoal e pungente com ressaibos de conto, é testemunho desta fragmentação,
sacrifício imposto (FA).